Tinha já 18 anos quando retomou os estudos, interrompidos terminada a 4.ª classe, por imposição da vida e das circunstâncias. Voltou à escola com afinco e em 1975 era “caloiro” de Medicina, na Universidade de Coimbra (UC). O seu percurso profissional é como que um acumular de paixões, da Medicina Interna à Desportiva, seguindo-se a Nutrição e a Geriatria. O mais recente desafio é a gestão dos destinos do Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – Rovisco Pais, uma unidade hospitalar de características singulares, na Tocha.

Manuel Teixeira Veríssimo nasceu e cresceu em Arazede, Montemor-o-Velho, “paredes meias” com o concelho de Cantanhede. Filho de agricultores, habituou-se desde cedo às lides do campo, tendo dedicado alguns anos a esta vida: “Quando concluí a Escola Primária não prossegui os estudos imediatamente. Durante algum tempo trabalhei com os meus pais na agricultura, algo que era usual, já que a grande maioria das pessoas que nasciam nas aldeias não seguiam estudos a partir da 4.ª classe”.

O interregno durou até ter 18 anos, ser “maior e vacinado” e decidir que queria voltar à escola, aprender mais e ir mais longe: “Reiniciei os estudos, tendo feito os liceais em Cantanhede, até ao antigo 5.º ano. Depois fui estudar para Coimbra, cumpri o Serviço Militar e acabei por entrar na Faculdade de Medicina”. O percurso resume-se em poucas palavras mas foram anos de empenho e dedicação, uma corrida contra o tempo que culmina no ingresso em Medicina, na Universidade de Coimbra, em 1975.

Para trás ficou uma infância “normal, das pessoas da aldeia, com a vida a fazer-se sempre muito próximo do campo, dos animais e dos brinquedos da altura, que eram completamente diferentes do que há hoje, já que não existia o desenvolvimento tecnológico actual”. As consolas e equipamentos electrónicos de então eram o pião, o berlinde e a marca. “O próprio futebol era diferente, havia dificuldade em arranjar bola. Muitas vezes tínhamos que improvisar”. A brincadeira nunca ocupou a cem por cento os dias do pequeno Manuel, até porque, confessa, sempre teve muito gosto pelo estudo e por conhecer mais. No entanto, “reportando-nos à época, as condições, perfeitamente normais e aceitadas, ditaram que eu não tivesse continuado os estudos logo nessa altura”.

A primeira Queima

A Medicina foi uma escolha que surgiu com alguma naturalidade, tendo vencido a Engenharia enquanto área que pudesse vir a satisfazer profissionalmente Teixeira Veríssimo: “Acabei por enveredar por essa área e não estou arrependido”. Estávamos em 1975, no rescaldo de uma Revolução, em pleno Verão Quente de um PREC (Processo Revolucionário em Curso) que teimava em não ver fim. Sucediam-se as greves, as ocupações e manifestações, as reu-niões entre partidos das quais não saíam soluções. Na Academia de Coimbra celebrava-se a Liberdade e continuavam banidas as Tradições Académicas.

“Vivia-se uma era pós-revolucionária em que a tradição académica estava parada, a Academia continuava de luto desde Abril de 1969 por causa das lutas estudantis e da contestação ao Estado Novo. Só no meu último ano de curso foi retomado o cortejo da Queima das Fitas, ainda assim no seio de muita controvérsia”. Naturalmente havia dois lados na luta, aqueles que defendiam o retomar das tradições e festas académicas e, do lado oposto “da barricada”, os estudantes que continuavam a opor-se a essas manifestações por considerarem que eram símbolos do Fascismo.

“Nunca entendi a questão dessa forma, entendi que a tradição tinha que ver com o passado, mas não com o passado político. No dia do próprio cortejo houve escaramuças na Praça da República e mesmo durante a Serenata, na Sé Velha, houve confusão, já que era o retomar das tradições. Entretanto as coisas acabaram por normalizar até ao momento em que a Festa é totalmente aceite”. Com ou sem tradições, ser estudante em Coimbra é sempre uma experiência especial, memorável. Também Teixeira Veríssimo não esquece esses dias: “É muito diferente das outras universidades portuguesas, por isso, e ainda hoje, as pessoas que vêm estudar para Coimbra acabam por ficar. Coimbra tem um ambiente muito próprio, talvez por ser uma cidade pequena, por ser uma Universidade antiga, acaba por ser acolhedora para os estudantes. O espírito de associativismo e de formação de grupos entre os estudantes, ao contrário do que tende a acontecer em Lisboa e no Porto, onde reina o individualis-mo, é muito forte”.

Paixão pela profissão

O terminar do curso de Medicina marcou o início de uma vida profissional repleta de escolhas e pautada por um acumular de paixões. “Terminei o curso tendo aulas já nos HUC [Hospitais da Universidade de Coimbra], e nos HUC continuei, até hoje”, remata o clínico, dono de uma contagiante gargalhada. O sentido de humor parece ser, aliás, uma característica bem vincada de Teixeira Veríssimo. É uma daquelas pessoas que ri com gosto e com frequência, pelo menos a julgar pelos momentos que partilhámos ao sabor de uma agradável conversa. Iniciou a actividade clínica em Cantanhede, em 1981, na área de Saúde Pública, tendo depois escolhido a especialidade de Medicina Interna em Coimbra, após a qual passou a integrar os quadros dos HUC. Estagiou em Paris durante cerca de um ano e meio, regressando depois a Portugal e a Coimbra, onde viria a ser chefe de equipa de Urgências.

A Medicina Interna foi apenas a primeira de várias paixões que tem vindo a acumular na área profissional, a que juntou alguns anos depois a Medicina Desportiva. Se não fosse médico, provavelmente não teria sido jogador de futebol, não por falta de entusiasmo ou gosto pela modalidade mas, nas suas próprias palavras, por falta de talento: Joguei futebol, nunca tendo sido um futebolista de grande qualidade, mas sempre com gosto. Jogava mais na defesa, porque a habilidade não era muita”, confessa bem-humorado. Ainda experimentou a orientação técnica de uma equipa, “com uns resultados piores, outros melhores”, tendo articulado a prática clínica com a desportiva, nomeadamente enquanto médico do Clube de Futebol União de Coimbra e, mais tarde, da Associação Académica de Coimbra.

Entretanto a área de Nutrição vai-se definindo como outra das paixões de Teixeira Veríssimo, área que aliou ao desporto e, mais tarde, pela da Geriatria, gosto que “herdou” da sua directora de então, Helena Saldanha. “Era uma área emergente, havia cada vez mais idosos e era necessário haver pessoas que tivessem conhecimentos médicos específicos nessa área. A Geriatria foi ganhando à área desportiva, como eu próprio fui ficando mais velho”, graceja. Acabaria por doutorar-se nessa vertente da Medicina em 1999. Responsável pela criação do Mestrado em Geriatria na Faculdade de Medicina da UC, que ainda hoje coordena, criou, também, a primeira cadeira de Geriatria ministrada em Portugal.

“Depois surge um novo desafio, com o qual eu não tinha grande ligação, que é a área da gestão hospitalar. Há três anos fui desafiado para presidir ao Conselho de Administração desta Instituição [Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – Rovisco Pais], o que na altura me agradou. Agradou-me a possibilidade de fazer crescer uma casa que me parecia ter grandes potencialidades”. A sua profissão é, assumidamente, uma das suas paixões, a que se juntam a prática de desporto, jogar e ver jogar futebol, ler e viajar.

O actual Presidente da Sociedade Portuguesa de Ateroesclerose e Vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna assume-se como um optimista e tem seguido um princípio simples ao longo da vida: “O que os outros conseguem fazer, eu também consigo. Não corresponde totalmente à verdade, mas como princípio acho que é bom. É preciso ser optimista e ambicioso, temos que querer fazer coisas e traçar metas”. Estes podem bem vir a ser dois ingredientes preciosos para que os portugueses enfrentem e ultrapassem os tempos menos bons que se avizinham.

Abril dos cravos vermelhos e da euforia

Quando o dia 25 de Abril de 1974 chegou, Manuel Teixeira Veríssimo estava a cumprir o Serviço Militar em Coimbra. Hoje, em vésperas de se assinalarem 37 anos sobre a data histórica, o médico recorda vivamente o dia que mudou o futuro dos jovens de então: “Foi uma data particularmente marcante para mim porque na altura estava na tropa em Coimbra. É uma data marcante para toda uma geração, para os jovens, porque naquele tempo todos iam para a tropa, mesmo os que tinham pequenas deficiências, e a maioria acabava por ir para a Guerra Colonial. Os jovens sentiam-se revoltados com essa obrigatoriedade, assim como toda a sua família. Essa é, para mim, uma das razões por que a Revolução foi tão bem aceite por toda a gente”.

A Revolução de Abril impunha o fim da guerra travada no Ultramar, o fim do suplício vivido por milhares de mães, o fim da incerteza que tomou conta do coração de tantas raparigas que viram os seus namorados, noivos e maridos partirem para o Continente Negro. “Mais do que estarem contra o Regime, muitos estavam contra a ida dos filhos para a guerra, contra tê-los longe na iminência de poderem morrer”. O então militar soma ao fim dessa imposição o início de uma época de abertura em termos ideológicos, um novo mundo em que o céu era o limite.

“Foi uma época de grande abertura, que permitiu aos jovens expandir as suas ideias e a sua actividade criativa. É uma época muito importante”. Em Coimbra, o 25 de Abril foi recebido sobretudo com euforia: “Recordo que às oito da manhã dirigi-me ao Quartel onde cumpria a tropa e encontrei a porta fechada. Achei estranho porque a porta estava sempre aberta, com uma sentinela. Quando me aproximei foi-me comunicado que tinha havido uma revolução durante a noite. Em relação à cidade houve uma certa euforia. Houve inclusivamente alguns ‘assaltos’, às instalações da Mocidade Portuguesa e à sede da PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado], com destruição dos carros dos agentes, e invasão de escolas com destruição das fotografias dos símbolos do Estado Novo [Américo Tomás, Presidente da República, e Marcelo Caetano, chefe do Governo. No entanto, podemos dizer que o clima era de paz e de euforia”.

B.I.

Manuel Teixeira Marques Veríssimo nasceu em Arazede, concelho de Montemor-o-Velho, no dia 11 de Junho de 1952. A infância foi igual à de tantos outros meninos do seu tempo, dividida entre livros, piões e bolas de futebol improvisadas. Feita a 4.ª classe arrumou os livros, pois que se impunha ajudar a família nas lides agrícolas, mas aos 18 anos havia de voltar a pegar-lhes, cursando Medicina em Coimbra. Hoje é, entre muitas outras coisas, Presidente do Conselho de Administração do Rovisco Pais, na Tocha. | FC